«A Política Parlamentar no Movimento Socialista» | Errico Malatesta

Título original: La politica parlamentare nel movimento socialista
Autor: Errico Malatesta
Data original: 1890
Obs: Tradução de 1914 por Neno Vasco, aqui ligeiramente modificada apenas para efeito de modernização do português

Capa do opúsculo original em italiano, 1890

A Política Parlamentar no Movimento Socialista

I.
O sufrágio universal

Antes de examinar a influência que o parlamentarismo exerceu no movimento socialista, é bom estudar o sufrágio universal, quer como princípio de vida política, quer como instrumento de emancipação; pois foi ele que, dando ao parlamentarismo ― essa forma política própria do regime burguês ― a consagração dum suposto consenso popular, fez com que um certo socialismo pudesse achar a ocasião, procurada ou não, de descer ao terreno parlamentar e assim corromper-se e aburguesar-se.

Se entre as instituições políticas que regem ou podem reger as sociedades humanas há alguma que pareça inspirar-se no princípio de justiça e de igualdade, e que tenha excitado e ainda excite vivas esperanças entre os amigos do progresso, com certeza é a do sufrágio universal.

O sufrágio universal, segundo os seus defensores, fechava para sempre a era das revoluções e abria o caminho às reformas pacíficas, feitas no interesse de todos e por todos consentidas. A legislação punha-se ao nível da civilização e, sempre modificável, corresponderia sempre às necessidades e às vontades de todos, ou pelo menos, da maioria dos homens. A opressão e a exploração da grande massa da humanidade por parte dum pequeno número de governantes e de possuidores já não tinha razão nem meio de existir; e, se na verdade a miséria do maior número não era uma inelutável lei da natureza, mas um facto social que a sociedade podia corrigir, desapareceria a miséria com todas as dores e todas as degradações que gera.

E, concordemos, à primeira vista pode parecer que a coisa deve ser assim mesmo.

Na atual sociedade tudo é regido por leis. Quem faz as leis são, em última análise, os deputados. Os deputados são nomeados pelos eleitores: portanto são os eleitores, ou, com mais rigor, é a maioria dos eleitores, quem manda e dispõe de tudo. E como os trabalhadores são o grande número, indo votar, seriam os árbitros da sua sorte e da situação geral.

Mas contra este raciocínio, aparentemente tão simples e claro, estão os factos com sua prepotente eloquência.

Há países em que o sufrágio universal existe e funciona regularmente há muitíssimo tempo; há-os que viram alternadamente estabelecido, abolido, restabelecido o sufrágio universal; e as condições morais e materiais do povo continuaram sendo sempre as mesmas.

Basta conhecer um pouco a história e a estatística, ou ter simplesmente viajado um pouco, ou ler pelo menos os jornais de qualquer cor, para ver que o sufrágio universal, mesmo sem o travão dum rei ou dum senado, ainda com o complemento do referendum e da iniciativa popular (como na Suíça), nunca e em nenhum lugar serviu para melhorar a sorte dos trabalhadores.

Nas repúblicas, como nas monarquias de sufrágio universal, as câmaras são compostas de proprietários, de advogados e de outros privilegiados, tal qual nos países em que o sufrágio é mais ou menos limitado às classes possuidoras ou instruídas. E tanto nuns como noutros países, as leis que as câmaras fazem não servem senão para sancionar a exploração e para defender os exploradores.

Em resumo, dos golpes de estado napoleónicos às grandes carnificinas burguesas; das invasões vis e espoliadoras de populações militarmente fracas ao esfomeamento sistemático dos trabalhadores e ao assassinato dos esfomeados recalcitrantes; do banditismo em grande escala dos conquistadores às mesquinhas prepotências e aos nervosismos burlescos de ministros cesarizantes, não há atentado à civilização, ao progresso, à humanidade, não há infâmia, grande ou pequena, que o sufrágio universal, habilmente manejado, não tenha absolvido, justificado, glorificado. Não há lágrimas de mulheres, soluços de desgraçados, que o voto inconsciente dos mesmos desgraçados não tenha escarnecido e agravado.

De que depende esta contradição entre os factos e os resultados que a lógica fazia prever? Trata-se porventura de um fenómeno inexplicável, de uma espécie de milagre sociológico?

Examinemos, e talvez um raciocínio mais completo, e portanto mais verdadeiro, nos mostre que o sufrágio universal apenas produziu o que logicamente devia produzir.

Teoricamente, o sufrágio universal é o direito que a maioria tem de impor a sua vontade à minoria.

Este pretendido direito é uma injustiça, pois a personalidade, a liberdade e o bem-estar de um só homem são tão respeitáveis, tão sagrados como os de toda a humanidade. E, por outro lado, não há razão alguma para crer que o maior número se encontre sempre do lado da verdade, da justiça e da utilidade geral: os factos demonstrariam antes que costuma suceder o contrário.

Se todos os homens menos um estivessem contentes por serem escravos e estarem submetidos, sem necessidades naturais, a toda a espécie de sofrimentos, esse único teria razão de revoltar-se e de reclamar liberdade e bem-estar. O voto, o número, nada decidem: não criam nem destroem direitos.

Uma sociedade igualitária deve ser fundada sobre o acordo livre e unânime de todos os seus componentes. Verdadeiramente, mesmo numa sociedade socialista, onde a opressão e a exploração do homem sobre o homem tenham completamente desaparecido e onde o princípio de solidariedade regule todas as relações humanas, pode suceder, sucederá decerto, que se produzam casos em que seja necessário, ou pelo menos mais espedito, recorrer à votação. Estes casos tornar-se-ão cada vez mais raros, à medida que a ciência das sociedades for descobrindo e demonstrando evidentes as soluções exatas que correspondam aos vários problemas da vida coletiva. Mas enfim, haverá sempre casos em que as soluções podem ser várias e em que seja necessário apelar para um expediente mais ou menos arbitrário, e em que não será possível ou conveniente a divisão em tantas frações quantos os partidos preferidos. Nesses casos o mais simples será que a minoria se adapte à vontade da maioria. Está bem: votar-se-á então provavelmente, mas em tal caso o voto não é um princípio, não é um direito ou um dever, é um pacto, uma convenção entre os associados.

Isto, porém, importa pouco às questões que estamos tratando, pois que, sejam quais forem as objeções que se possa fazer contra os direitos da maioria, a realidade é que o regime do sufrágio universal, mentiroso como todo o sistema parlamentar, não é de modo algum o governo da maioria ― nem mesmo da maioria dos eleitores. É simplesmente um artifício com o qual o governo de uma classe ou de uma parcela toma as aparências de governo popular.

Com efeito, cada eleitor nomeia apenas um ou poucos deputados numa assembleia composta ordinariamente de algumas centenas de deputados. Portanto, ainda quando ele visse triunfar o seu candidato, a sua vontade, que já nas eleições entrava numa fração infinitesimal, seria representada só por um deputado, o qual por sua vez não é contado, na Câmara, senão por uma fração mínima. A Câmara, por conseguinte, tomada no seu conjunto, de nenhum modo representa a maioria de eleitores. Cada deputado é o eleito dum certo número de eleitores, mas o corpo eleitoral como totalidade não é representado.

Assim sucede que factos que interessam, por exemplo, uma dada localidade ou uma dada corporação, devem ser julgados por uma assembleia de gente estranha àquela localidade ou àquela corporação, ignorando ou desprezando tais interesses, e na qual só um ou poucos podem, com mais ou menos razão, ostentar um mandato recebido dos interessados.

A Sicília será governada por uma assembleia em que os sicilianos são uma ínfima minoria; as leis sobre minas ou navegação serão feitas por todos, menos por mineiros e marinheiros; e assim, em geral, cada problema será resolvido por quem completamente o ignora, cada interesse será tratado por todos, menos pelos interessados.

Depois, mesmo deixando de lado a questão da mulher (que aliás tem tantos direitos e tantos interesses como a população masculina) e não levando em conta que, para serem deputados eleitos pela maioria dos eleitores do seu círculo, necessário seria que em cada circunscrição só houvesse dois candidatos, é evidente que, representando a Câmara somente uma parte dos eleitores, e não sendo nunca as leis aprovadas pelos deputados por unanimidade, a maioria que em definitivo faz a lei e dispõe da sorte de um país não representa mais do que uma pequena parte da população.

E se examinarmos os trâmites seguidos por um projeto antes de se tornar lei, as concessões e transações a que são levados os deputados para poderem chegar a um acordo; se calcularmos as mil considerações de um partido e da clientela estranhas ao objeto sobre que se deve legislar, mas que nem por isso deixam de ter uma influência predominante sobre o voto dos deputados, compreenderemos sem demora que a lei, uma vez feita, já não representa nem os interesses, nem a vontade, nem as ideias de ninguém. E isto pondo de parte os novos obstáculos do voto dos senadores e da sanção real ou presidencial, que complicam, em maior ou menor grau, todas as constituições existentes.

Entretanto os deputados, longe do povo, desprezando os interesses dele, impotentes, ainda que quisessem, para os satisfazer, acabam por se ocupar unicamente «de fortificar e aumentar o seu poder, de obter incessantemente novos subsídios e enfim de se emancipar da dependência do povo; termo fatal», como diz Proudhon, «de todo o poder saído do povo».[1]

Tais são as consequências necessárias do parlamentarismo dependentes da própria natureza do seu funcionamento, supondo ainda que o voto dos eleitores fosse livre e esclarecido.

Que será então se considerarmos as condições reais em que se exerce o sufrágio universal, numa sociedade onde a maioria da população, torturada pela miséria e embrutecida pela ignorância e pela superstição, depende pelos seus meios de existência duma pequena minoria que detém a riqueza e o poder?

O eleitor pobre não é e não pode ser, em geral, nem capaz de votar em consciência, nem livre de votar como quer.

Sem instrução prévia e sem meios para se instruir, reduzido a crer cegamente no que lhe diz um jornal, quando sabe ler e tem tempo para o fazer, ignorando as coisas e os homens que não estão com ele em imediato contato, pode o proletário saber quais as coisas que se podem pedir a um parlamento e quais os homens que por ele as podem pedir? Pode ele sequer fazer uma ideia clara do que seja um parlamento?

Os camponeses e operários, mesmo os menos desenvolvidos, sabem certamente mais do que os doutores em economia política quando se trata dos seus interesses diretos, das coisas que eles vêem e tocam, do seu trabalho, da sua casa, da sua vida cotidiana. Podem por certo formar facilmente uma opinião sobre todas as questões que lhes dizem respeito, quando lhes sejam apresentadas dum modo simples e natural. Saberiam dizer se querem ou não que o patrão, sem se erguer da cadeira, lhes tire a mais bela parte dos produtos do seu trabalho. Saberiam como empregar as riquezas das suas comunas ou países, se possuíssem todos os dados necessários sobre os produtos disponíveis e sobre a capacidade produtiva e necessidades de todos os seus concidadãos. Saberiam como ensinar um ofício aos filhos… e o que não soubessem e não compreendessem, aprendê-lo-iam bem depressa quando se achassem obrigados a ocupar-se em pessoa do assunto, em vista numa necessidade prática.

Mas se as questões que lhes são apresentadas não lhes dizem respeito, ou se são de tal modo complicadas por interesses estranhos que eles já não as podem reconhecer; se as coisas mais simples são obscurecidas por uma terminologia técnica que faz da política uma ciência oculta, se eles não têm tempo de se informar e de refletir, e se não se sentem levados a fazê-lo porque sabem que não são eles que hão-de decidir e que há quem por eles pense, então o seu voto será inconsciente, como geralmente é.

E se mesmo o eleitor pobre conseguisse adquirir a consciência da sua função, poderia ser independente e livre de votar como quer?

A sua vida e a dos seus filhos dependem do beneplácito dum patrão que pode, negando-lhes trabalho, reduzi-los todos a morrer de fome. Os patrões e os agentes do governo, dos partidos fortes, têm mil maneiras de se vingar, franca ou disfarçadamente, de quem não votou como eles queriam. E por outro lado podem vir mil lisonjas, mil favores, lançar a todos os momentos a perturbação no ânimo do infeliz, pondo a sua consciência de homem livre em luta com o afeto, os deveres que ele sente com a família, a que não sabe recusar, por um sentimento de altivez pessoal, uma vida um pouco menos miserável, ou pelo menos um momentâneo alívio aos terríveis sofrimentos de todos os dias.

O voto é secreto, dizem: mas isso de que serve quando o patrão ou o governo, ou os partidos, podem mandar os seus subordinados à urna sob a vigilância dos seus agentes, e podem de cem formas assegurar-se do voto dado ou pelo menos fazer crer nessa possibilidade? De que serve o segredo, quando só o facto de o querer respeitado constitui, em face do patrão, uma prova de hostilidade e, portanto, um título para ser mal visto e expulso da fábrica ou das terras? E é pior ainda quando um patrão considera todos os seus dependentes solidariamente responsáveis pelo triunfo de um deputado, ameaçando-os com o fechamento da fábrica ou com outras represálias; como infelizmente muitas vezes tem acontecido, sobretudo nos grandes estabelecimentos metalúrgicos, onde se pode dizer ao operário que o deputado F. levaria o governo a dar trabalho. Então os operários ― tão corruptor é o medo da fome! ― chegam até a vigiar-se mutuamente, a espionar-se, receando a derrota do candidato do patrão.

As massas proletárias podem insurgir-se e arriscar tudo na esperança de uma vitória imediata: mas não arriscam o trabalho, isto é, o pão e a paz, quando se trata de uma luta que apenas lhes oferece uma promessa, cem vezes desmentida, de lento e longínquo melhoramento, e que deixa o combatente, vencedor ou vencido, sempre à discrição do patrão. Isto explica os plebiscitos que aclamam um governo justamente na véspera do dia em que uma revolução o há-de derrubar.

Não, o eleitor pobre não é consciente nem livre; e não poderia deixar de ser assim.

Se a miséria não embrutecesse, se as necessidades económicas e as preocupações do dia de amanhã não tornassem o homem submisso e medroso; se a massa, numa palavra, tivesse a consciência dos seus direitos e a vontade firme de os fazer valer, não precisaria de andar a procurar homens mais ou menos honestos e capazes para os encarregar das suas reivindicações, e a sua emancipação seria fácil e pronta; os trabalhadores recusariam trabalhar para os patrões, os contribuintes recusariam pagar os impostos, os recrutas não prestariam serviço; e ter-se-iam destruído, duma vez, propriedade individual e Estado político, que são as duas cadeias que apertam e martirizam a espécie humana.

Desfeita assim, pelo raciocínio e pelos factos, toda a ilusão sobre o sufrágio popular como instrumento de emancipação, as classes privilegiadas, que a princípio se mostraram receosas e obstinadas, vão pouco a pouco compreendendo o bem que dele podem tirar e aceitam-no como uma preciosa arma de governo.

Quando já se não pode submeter o povo com a simples força bruta, e as mentiras dos padres já não servem para lhes impingir a miséria como uma lei divina; quando ele já não põe as suas esperanças no paraíso e já não teme a polícia, resta então um meio apenas de o manter escravo: fazer-lhe acreditar que ele é que é o patrão e que as instituições sociais são obra sua, podendo mudar-se segundo a sua vontade. E a burguesia dá uma prova genial de talento político concedendo ao povo esse sufrágio que, se pudesse exercer-se em condições de consciência e de independência, não seria senão o direito de escolher os patrões; mas que, nas condições de ignorância e de servidão económica quase feudal em que se encontra o povo, não passa duma indigna comédia, em que vulgares charlatães põem em leilão a consciência própria e as lágrimas alheias.

II.
Socialismo e Parlamentarismo

Desde o seu nascimento, o socialismo, com as armas da crítica positiva, que se apoia sobre os factos e dos factos procura as causas e prevê as consequências, fizera justiça ao sufrágio universal e a toda a mentira parlamentar. Se assim não fizesse, não teria razão de existir como ideia e partido novo; e ter-se-ia confundido com a absurda utopia liberal, que espera a harmonia, a paz e o bem-estar geral da luta livremente combatida (sic) entre gente armada de toda a riqueza e de toda a força social e pobres desgraçados sem um pedaço de pão.

O socialismo, na acepção mais larga e mais autêntica da palavra, significa a sociedade feita instrumento de liberdade, de bem-estar e de desenvolvimento progressivo e integral para todos os seus membros, para todos os seres humanos. Partindo da verdade fundamental de que a evolução das faculdades morais e intelectuais pressupõe a satisfação das necessidades materiais, e que não pode haver liberdade onde não há igualdade e solidariedade, o socialismo reconhece que a servidão em todas as suas formas, política, moral e material, deriva da dependência económica do trabalhador para com os detentores da matéria-prima e dos instrumentos de trabalho. E depois de ter procurado às apalpadelas o seu caminho, depois de ter produzido uma série de projetos artificiosos e utopísticos, achou enfim a sua base sólida no princípio, cientificamente demonstrado, da justiça, utilidade e necessidade da socialização da riqueza e do poder.

Achado o fim, urgia procurar as vias e os meios de o atingir. E mal o socialismo, saído do período da especulação abstrata, começou a penetrar no meio das massas sofredoras e a fazer as suas primeiras armas nas lutas práticas da vida, os socialistas viram que estavam metidos dentro dum círculo de ferro que só com a violência se podia romper.

Impossível ser livre (já o demonstrara o socialismo) sem ser economicamente independente; e por outro lado, como se pode chegar à independência económica se se é escravo?

O povo, espoliado de tudo o que a natureza criou servindo para o sustento do homem, e de tudo o que o trabalho humano juntou à obra da natureza, depende pela sua vida do beneplácito dos proprietários e vê-se reduzido pela miséria ao aviltamento e à impotência. E para consolidar e defender este estado de coisas, estão os governos com toda a força dos exércitos, da polícia e das finanças.

Qual o meio legal de emancipação, quando a lei só se aplica para defender o estado de coisas que se deveria destruir?

Não a ação política legal das massas, que se resume toda no voto, pois que esta arma, para ter um valor qualquer, supõe já na maioria numérica do povo aquela consciência e independência, que se trata precisamente de tornar possível e conquistar. E depois a burguesia, e por ela os governos, só concedem o voto quando convencidos da sua inocuidade, ou quando, em frente da atitude ameaçadora da massa, o consideram um meio oportuno para a desviar e adormecer: caso em que seria, sob todos os pontos de vista, uma loucura contentar-se com ele. Concedido ele, sabem manejá-lo e dominá-lo, e se por acaso se mostrasse indócil, saberiam suprimi-lo. Ao povo não resta então outro recurso senão a própria revolução que o voto deveria ter tornado desnecessária.

Não os expedientes económicos legais ― socorro mútuo, caixas económicas, cooperativas, greves ― pois que o poder esmagador e sempre crescente do capital, apoiado onde for preciso pela força das baionetas, e as condições materiais e morais a que esse poder reduziu o proletariado, tornam-nos meios impotentes, ilusórios, ou simplesmente ridículos.

Existem, pois, somente duas saídas. Ou a renúncia voluntária das classes dominantes à posse exclusiva das riquezas e a todos os privilégios de que gozam, sob a influência dos bons sentimentos que nelas pudesse fazer nascer a propaganda socialista; ou a revolução, a ação violenta das massas, excitadas e movidas pela minoria consciente que se vai organizando no seio do socialismo.

A primeira destas duas saídas, em que tão generosos como ingénuos filósofos creram por um momento, é uma esperança vã: está demonstrado por toda a história passada e pela experiência ensanguentada dos fatos contemporâneos.

Nunca um governo, nunca uma classe privilegiada renunciou ao seu domínio, ou fez uma concessão verdadeira, a não ser constrangida pela força. E a conduta cotidiana da burguesia capitalista, as perseguições incessantes e ferozes com que ela responde às reivindicações do proletariado, os morticínios inauditos a que se tem abandonado, os armamentos excessivos com que se prepara, mostram que, como as classes que a precederam no domínio, só afogada em sangue se decidirá a desaparecer da história.

Restava a revolução; e todos os socialistas que do socialismo não faziam objeto de distração contemplativa, mas um programa prático que queriam ver realizado quanto antes, foram revolucionários.

Os socialistas estavam, é certo, divididos em duas grandes frações correspondentes a duas correntes de ideias. Uns, os autoritários, queriam servir-se, para emancipar o povo, do mesmo mecanismo que o mantém hoje submisso, e tinham em mira a conquista do poder político. Os outros, os anarquistas, considerando que o Estado só enquanto representa e defende os interesses duma classe ou duma oligarquia tem razão de ser, desaparecendo quando pela universalização do poder e da iniciativa se confunde com a totalidade dos cidadãos, visavam à destruição do poder político.

Uns queriam apossar-se do governo e decretar, com formas e modos ditatoriais, a entrega do solo e dos instrumentos de trabalho à comunidade, e organizar, de cima, a produção e a distribuição socialista. Os outros queriam derrubar simultaneamente poder político e propriedade individual, e organizar a produção, o consumo e toda a vida social por meio da obra direta e voluntária de todas as forças e de todas as capacidades que existem na humanidade e que procuram naturalmente manifestar-se e atuar.

Mas todos, repetimos, queriam a revolução, apelavam para a força; e para maturar a revolução queriam e praticavam a propaganda incansável das verdades descobertas pelo socialismo, e a organização das forças conscientes do proletariado. Atraíam a si o pequeno número de burgueses capaz de se elevar acima dos mesquinhos interesses de classe, e de desprezar os privilégios próprios pelo grande ideal duma humanidade livre e feliz; insuflavam nas massas o espírito de revolta e preparavam a falange que, aproveitando todas as circunstâncias oportunas, devia dar a iniciativa do assalto contra as instituições.

A luta teria sido sem dúvida longa e fatigante, mas o caminho estava traçado e ter-se-ia chegado diretamente à vitória plena e completa. Mas eis que, contradizendo todas as tendências do programa e a propaganda que eles mesmos tinham feito com zelo e inteligência, alguns socialistas se lembraram de se meter pelos atalhos tortuosos e sem saída do parlamentarismo.

O socialismo, escarnecido e negado a princípio, combatido depois com furor, ganhava já suficiente força para que os burgueses vissem nele um perigo sério e uma força com que era preciso contar. Uns, os satisfeitos, julgaram oportuno juntar às perseguições e aos morticínios as armas da corrupção e do engano; ao passo que os outros, os que sob o nome de democratas aspiravam a apoderar-se do governo, pensaram em mistificá-lo e em servir-se dele.

Por outro lado havia socialistas que se achavam dispostos a aproximar-se da mesma burguesia que altivamente tinham combatido. Ou cansados da luta e domados pelas perseguições; ou porque neles o sentimento socialista e revolucionário nunca na realidade atravessara a epiderme e desaparecia com o esfriar dos primeiros entusiasmos juvenis; ou porque haviam imaginado a vitória fácil e vizinha e desconcertava-os a descoberta de obstáculos imprevistos ― esses socialistas procuravam, talvez ainda sem uma perceção nítida do facto, uma ocasião, um pretexto decente para arrear bandeira e passar para o campo inimigo. Noutras circunstâncias teriam abertamente traído os amigos e renegado o ideal, ou ter-se-iam então retirado da luta, simples e honestamente, como todo combatente a quem as forças atraiçoam. Mas deparou-se-lhes o meio para poderem esconder a traição sob as aparências da convicção, e dissimular o cansaço com o pretexto duma mudança de tática, e esse meio foi por eles imediatamente agarrado.

O terreno comum em que se encontraram os burgueses, que procuravam corromper, e esses socialistas, que procuravam ser corrompidos, foi a urna eleitoral. E o dano não teria sido grande. Mas os traidores, os ambiciosos e os cansados conseguiram arrastar à urna muitos bons elementos que julgavam sinceramente que iam adquirir uma nova arma de luta contra a burguesia, e apressar com aquele meio o advento da revolução.

Naturalmente, para mascarar a manobra a passagem fez-se gradualmente.

Ao princípio não se invalidou nenhuma das conclusões adquiridas pelo programa socialista. A expropriação por meio da revolução, repetia-se, é o único meio de emancipação: o sufrágio universal, a república, e todas as reformas políticas nada fazem, não passando de laços armados à ingenuidade popular. Mas, insinuava-se docemente, algum bem se podia tirar daí: aproveitemos tudo, sirvamo-nos como armas das concessões que possamos arrancar ao inimigo, alarguemos o nosso campo de ação, deixemos de nos consumir na nossa impotência, sejamos práticos. E depressa se apresentou o projeto de ir à urna, fim que a mirava e a que se reduzia todo aquele pretenso alargamento de tática. Como, porém, não se ousava ainda renegar tudo o que estava dito sobre a inutilidade da luta eleitoral e sobre a ação corruptora do ambiente parlamentar, disse-se que era necessário votar simplesmente para uma prova de forças, como se fosse preciso ir às urnas e fazer-se contar pelo inimigo para julgar dos progressos do partido. E para afetar escrupulosidade, falou-se de votar com listas brancas, ou por mortos ou por inelegíveis. Depois, assim como quem não quer a coisa, os mortos fizeram-se vivos e os inelegíveis transformaram-se em pessoas que podiam e queriam entrar e ficar no parlamento. Mas não se ousava assim confessá-lo: tratava-se sempre de candidaturas de protesto, os eleitos não entrariam no parlamento, repeliriam o juramento onde ele fosse exigido, ou então entrariam para lançar à cara da burguesia a sua infâmia, e para se fazerem expulsar como inimigos que não transigem. Depois nem isto. É preciso ir ao parlamento para utilizar a tribuna parlamentar, para descobrir e denunciar ao povo os bastidores da política, para ter sentinelas avançadas no campo inimigo, posições tomadas na cidadela burguesa.

O deputado socialista não devia ser legislador, não devia ter ligação alguma com os deputados da burguesia: devia estar no parlamento como espectro ameaçador da revolução social no meio dos que vivem do suor e do sangue do povo.

Mas qual! Já se estava no declive e era preciso ir até ao fundo. O partido revolucionário, que entrava no parlamento, devia tornar-se reformista, e assim foi.

A emancipação integral, começaram a dizer, é uma bela coisa, mas é como o paraíso: uma coisa distante, distante, e que ainda ninguém viu. O povo precisa de melhoramentos imediatos. Mais vale pouco do que nada. Quanto mais concessões se arrancarem à burguesia, mais fácil será a revolução. Sem contar aqueles ― poucos, afinal ― que saltaram o fosso e afirmam rasgadamente que se pode atingir o fim por evolução pacífica.

E invocou-se a ciência, essa pobre ciência que se serve com todos os molhos, para sofismar a perder de vista sobre o tema evolução e revolução; como se houvesse alguém que negue a evolução, e a questão não fosse antes sobre a espécie de evolução que melhor corresponde ao fim socialista e que portanto os socialistas devem propugnar.

A própria revolução não é senão um modo de evolução; modo rápido e violento, que se produz, espontâneo ou provocado, quando as necessidades e as ideias nascidas duma evolução precedente já não acham possibilidade de se satisfazer, ou quando os meios monopolizados por alguns fazem com que a evolução se desenvolva, a partir desse momento, num sentido regressivo, se não intervém para encarrilá-la uma força nova ― a ação revolucionária.

Todos de acordo que para vencer é indispensável preparar o ambiente da vitória; que contra a evolução ou o estacionamento burguês urge outra evolução que leve à destruição dos resultados daquela. A questão está em ver qual é a forma de evolução que pode conduzir mais diretamente, com menor perda de tempo e de força, ao fim que se tem em vista. Assim, no nosso caso, para chegar ao ponto em que o povo se sinta e se declare dono de tudo, para tudo utilizar em proveito de todos, e comece a fazer por suas mãos as suas coisas, necessária se torna uma evolução como a podem dar a propaganda socialista e o exercício da revolta contra as instituições, e não a que pode derivar do parlamentarismo, que ensina o abandono da iniciativa própria em mãos alheias, ou das cooperativas que no trabalhador fazem nascer a esperança da propriedade e com ela o egoísmo do proprietário.

Não voltaremos à impotência do sufrágio universal e do parlamentarismo para resolver a questão social, nem à futilidade de todas as reformas não fundadas sobre a abolição da propriedade individual, pois que isto deve ser já uma coisa provada para quem é socialista; e nós neste opúsculo não devemos defender os princípios socialistas, mas supô-los já demonstrados.

Mas, como a razão ou o pretexto que serve a certos socialistas para tomarem parte nas eleições, e para se fazerem mandar ao parlamento, é a vantagem que daí poderia advir para a propaganda, insistiremos sobre o dano que, pelo contrário, sofre com isso a propaganda.

Ordinariamente os que apregoam a utilidade de se terem socialistas nos parlamentos e nos outros corpos eleitos raciocinam como se para ser eleito bastasse querê-lo. Teremos lá, dizem eles, homens que gozarão do direito de viajar de graça ou de outras vantagens económicas, que lhes permitirão dedicar-se com maior eficácia à propaganda; homens que poderão observar de perto os podres do mundo político e denunciá-los ao público, e que poderão, sobretudo, servir-se da tribuna parlamentar para defender os princípios socialistas, e forçar todo o país a estudá-los e discuti-los. Por que renunciar a estes benefícios?

Antes de mais nada, uma questão prévia: conservarão os eleitos o programa que tinham como candidatos, e gastarão em defendê-lo a mesma energia que gastavam antes? Sem dúvida seria belo, honroso para a natureza humana, poder afirmar que, fossem quais fossem as convicções de cada um e o método de luta escolhido, nunca faltariam a sinceridade e a coragem. Mas a prova está feita; e desgraçadamente, quando se pensa na conduta ignóbil e vil observada, em toda a parte, por todos ou quase todos os deputados socialistas, não é possível conservar tais ilusões. O ambiente parlamentar corrompe, e o operário e o revolucionário deixam de o ser pelo simples facto de se terem tornado deputados. Afinal não é caso para espantos. Tomai um trabalhador, arrancai-o ao seu ambiente, subtraí-o ao trabalho, afastai-o de vós, cuja miséria ele via e compartilhava, mandai-o para o meio da bela sociedade onde se goza e não se trabalha, sujeitai-o a todas as tentações; espantar-vos-eis depois que ele se adapte a um ambiente bem mais confortante que aquele em que primeiro vivia, que ele procure garantir o insólito bem-estar, e cedo ou tarde se esqueça dos seus irmãos de miséria e dos compromissos com eles contraídos? Tomai um revolucionário habituado a ser jogado, como uma bola, de prisão para prisão, fazei dele um legislador; e ficareis depois surpreendidos se ele se deixa amansar pela tepidez de uma liberdade e de uma segurança pessoais jamais gozadas? E por outro lado, o sentimento da impotência, no meio de gente absolutamente refratária à sua influência, não levará mesmo quem é perfeitamente sincero a fazer concessões e transações, com a esperança de poder ao menos obter qualquer coisa?

Mas demos ainda de barato que ninguém se corrompa, e que os homens sejam todos heróis… mesmo os que morrem por uma cadeira de deputado.

Como se pode, porém, conseguir mandar socialistas ao parlamento? A maioria dos eleitores não é socialista, ainda que se fabricasse um círculo eleitoral de propósito; que, se o fosse, então não precisaria de nomear deputados, mas poderia, mesmo se todas as outras circunstâncias fossem reacionárias, atacar de mil maneiras mais eficazes o regime burguês e ser um centro de irradiação socialista. Para obter, portanto, uma maioria é necessário transigir, aliar-se com este ou com aquele, mistificar o programa, prometer reformas imediatas, fazer crer uma coisa a este e outra àquele; arranjar as coisas de modo que a burguesia vos tolere, que o governo vos não combata com muita fúria. E nesse caso, em que vem a dar a propaganda socialista?

Por outro lado, como todos se julgam honestos e quase todos se tomam por habilitados, sucede que quase todo aquele que sabe dizer duas palavras se considera no seu íntimo tão deputável como qualquer outro: a nobre ambição de fazer o bem e de ser o primeiro nos riscos e nos sacrifícios é pouco a pouco substituída, com o pretexto do bem geral, pela baixa ambição das honras e dos privilégios, e nascem as rivalidades entre os companheiros, as invejas e as suspeitas. A propaganda dos princípios cede o passo à propaganda das pessoas; o triunfo das candidaturas torna-se o grande, ou antes, o único interesse do partido; e uma turba de politiqueiros, que no socialismo vêem um meio como outro qualquer de abrir caminho, atira-se para o meio do povo, mistifica e corrompe programa e partido.

E que dizer da esperança de obter, por meio dos deputados socialistas, reformas que possam, esperando melhor, aliviar as dores do povo e tirar-lhe obstáculos do caminho? Os privilegiados não cedem senão à força ou ao medo. Se mesmo no regime atual é possível qualquer melhoramento, o único modo de o obter é agitar-se fora dos corpos constitucionais e contra eles, mostrando a firme decisão de o querer a todo o custo. Confiar aos deputados o patrocínio da vontade popular só serve para fornecer ao governo o meio de a iludir, e para entreter o povo com esperanças vãs.

III.
Socialistas legalistas e socialistas anarquistas

Das duas facções em que se dividia o partido socialista, os autoritários deviam naturalmente sentir menor repugnância pela tática parlamentar, pois que (salvo a transição dum período revolucionário durante o qual se transformaria por meios ditatoriais a constituição económica da sociedade) a forma política a que eles aspiravam era uma forma qualquer de parlamentarismo. Conservar no povo o respeito do princípio de autoridade e desenvolver nele o hábito de abandonar em mãos alheias a iniciativa própria e a força própria, podia entrar nas suas miras, visto que lhes teria facilitado a tarefa no dia em que conseguissem apanhar o poder.

Mas aceitando, de facto se não em teoria, o parlamentarismo no atual ambiente económico, e esperando e fazendo esperar reformas e melhoramentos da obra dos poderes legais, deixaram de ser revolucionários, deixaram na prática de ser socialistas e tornaram-se, ou vão-se tornando, simples democratas, republicanos onde existe a república, monárquicos onde existe a monarquia, reduzindo-se todo o seu programa ao sufrágio universal… salvo, concordemos, as aspirações teóricas, que o sufrágio nunca poderá realizar.

É a lógica da situação que se impõe.

Republicanos e monárquicos democráticos dizem: que o povo faça a sua vontade… por meio de assembleias eleitas por sufrágio universal. E as assembleias fazem a vontade dos proprietários, dos padres e dos politiqueiros, de que são e serão compostas enquanto durarem as atuais condições económicas.

Os socialistas deveriam responder, sob pena de deixarem de ser socialistas, que o povo não pode fazer o que quer, nem saberá o que deve querer enquanto for economicamente escravo. Mas tendo, por necessidades eleitorais e por conveniências pessoais, desprezado primeiro e combatido depois, mais ou menos abertamente, a propaganda revolucionária, que lhes restava senão aceitar o terreno que lhes ofereciam os adversários naturais do socialismo? E aceitaram-no, e a ponto de esquecer muitas vezes as próprias afirmações teóricas, que ficavam como a única platónica diferença entre eles e os democratas burgueses.

Para os anarquistas era outra coisa. Para eles, que negam a delegação do poder e fazem apelo à ação livre e direta de todos, a «nova tática», além de fazer desprezar a propaganda socialista e revolucionária e lançar o partido nos braços dos burgueses, tinha também o erro gravíssimo de dar à parte consciente das massas uma educação diametralmente oposta ao fim que os anarquistas querem atingir, porque habitua a confiar nos outros e a ficar inerte. E por isso os anarquistas, como partido, ficaram incólumes da lepra parlamentar. Aqueles que, pelas razões já ditas, por ela foram atingidos, deixaram de ser anarquistas, uniram-se aos socialistas autoritários, e com esses precipitaram de cabeça nos precipícios da politiquice burguesa.

Por causa das deserções, das traições, das transações e das inverosímeis alianças que a tática parlamentar produziu, houve no campo socialista um longo período de incerteza e de confusão que paralisou o ímpeto do movimento; mas hoje a posição volta a ser límpida e clara.

A evolução das ideias e dos factos, a lógica do método, a influência determinante que os meios empregados exercem sobre o fim a atingir-se fizeram com que, presentemente, de verdadeiro socialismo só exista o socialismo anárquico, que é de sua natureza antiparlamentar e revolucionário.

Isto se se toma a palavra socialismo no sentido que lhe deram os seus defensores e os seus mártires, e que dela fez a alavanca poderosa que derrubará o mundo burguês. Porque se o significado da palavra socialismo segue a retirada, que precipitadamente estão executando os parlamentaristas, e designa esse híbrido montão de reformas burlescas, de contraditórias aspirações, de mentiras imprudentes, que forma a base dos programas eleitorais «socialistas», então poderão certamente ser socialistas Guilherme da Alemanha e o Papa Leão, L’Emancipazione de Roma e todos os deputados e conselheiros «socialistas»; ― mas não o foram os que desmascararam as mentiras da Economia política e o nada da democracia, e que destroçaram moralmente mazzinismo e radicalismo e os reduziram para sempre à impotência; não o foram nem Bakunin nem Marx; não o foram os que pelo socialismo sacrificaram juventude, paz, amor, liberdade; não o foram mesmo aqueles que às lutas socialistas dos primeiros anos, habilmente exploradas mais tarde, devem a sua atual situação política; não foi a Internacional, não o são os anarquistas.

O socialismo! o que foi! a que está reduzido!

Saído para fora das especulações dos filósofos, dos sonhos dos utopistas, das revoltas das plebes, o socialismo anunciou-se ao mundo como a boa nova da idade moderna. Era uma promessa de civilização superior; era a rebelião contra todas as prepotências, todas as injustiças; era a abolição do ódio, da concorrência, da guerra; o triunfo do amor, da cooperação, da paz; era o advento do bem-estar e da liberdade para todos; a realização no futuro daquele éden que a fantasia dos povos e dos poetas, sequiosos de ideal e ignorantes de história, pusera na origem da humanidade.

Era a luta humana por excelência; e elevando-se acima das raças e das pátrias, acima das religiões e das escolas filosóficas, acima das classes e das castas, abraçava todos os homens e todas as mulheres num puro ideal de igualdade e de solidariedade.

Não pedia a substituição de um partido por outro ou de uma classe por outra, o advento ao poder e à riqueza de um novo estrato social (quarto estado), mas a abolição das classes, a solidarização de todos os seres humanos no trabalho e no gozo comuns.

E os socialistas eram apóstolos, confessores e mártires; sentiam que traziam em si um mundo, tinham a consciência da sua sublime missão e esta consciência tornava-os altivos, corajosos e bons.

Ignorantes ou doutos, jovens ingénuos ou velhos restos de outras batalhas; parte eleita do proletariado, ou filhos de burgueses rebeldes contra a classe em que tinham nascido, que consideravam os seus privilégios de nascimento como uma dívida que lhes impunha maiores deveres para com a causa dos deserdados, tinham confiança no bem e em si próprios, amavam o povo, eram sedentos de ciência e de lutas, e afrontavam com altivez e segurança as zombarias e as calúnias, as pequenas e as grandes perseguições, o cárcere, o exílio, a miséria, o patíbulo; e andavam para a frente.

Votados a uma luta de morte contra todas as instituições políticas, económicas, religiosas, judiciárias, universitárias do mundo burguês; chocando tantos interesses e tantos preconceitos; tendo de resistir a seduções e ameaças de todas as espécies, separavam-se nitidamente, tanto por uma natural repugnância contra os exploradores e mistificadores do povo, como por tática, de todos aqueles que não eram povo nem pela integral emancipação do povo combatiam. Formavam partido, escola, poderíamos dizer classe, eles sós.

Sós contra todos, escreviam na sua bandeira o grito das consciências íntegras, o grito de quem tem confiança em si e na causa própria, o grito sagrado dos dias de batalha: quem não está connosco, é contra nós. E entendiam que com eles estavam todos os miseráveis, todos os oprimidos, todas as vítimas; e todos aqueles que faziam sua a causa dos miseráveis e combatiam pela justiça, pela liberdade e pelo bem-estar geral; e contra eles, estavam imperadores e assassinos do povo, usurários e politiqueiros, padres e republicanos.

Outro socialismo, outros socialistas, não havia.

E agora? Agora há um socialismo que só serve para enganar o povo com vãs promessas, para o manter dócil e para fazer dele escada; e há socialistas que traficam nos paços e nos parlamentos, que se aliam com os burgueses, que se inclinam ante os ministros, que aclamam um imperador, que se vendem a um soldado, que mentem aos companheiros, que prostituem ideais, programas, consciência, para surripiar aos ingénuos um voto, que lhes sirva para entrarem no meio da burguesia.

Ó socialistas, homens simples e puros, em cujo peito ferve o santo amor dos homens; ó socialistas que pelas lisonjas de falsos amigos fizestes sem saber os interesses da burguesia, não sentis vergonha vendo a vossa bandeira arrastada pela lama?

Não, estes mercantes de votos, estes comediantes não são socialistas; expulsai-os do meio de vós. E vós, voltai às viris batalhas que hão-de varrer do mundo propriedade individual e governos, miséria e escravidão.


[1] Proudhon, Sistema das contradições económicas, ou filosofia da miséria.

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