O individualismo stirneriano no movimento anarquista (Luigi Fabbri)

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Série de 3 artigos polémicos sobre o individualismo stirneriano, publicados originalmente em 1903 na revista Il Pensiero de Roma (números 7, 8 e 10, que podem ser consultados online aqui). Esta obra foi também publicada em brochura, pelo menos em 1904 em Praga e em 1973 no México. Acrescentámos mais dois artigos, publicados em números posteriores da mesma revista Il Pensiero, que dão continuação à polémica.

Tradução: João Black
(Todas as notas são do autor)

O INDIVIDUALISMO STIRNERIANO
NO MOVIMENTO ANARQUISTA

I

Uma prova da seriedade e da força duma doutrina é surgirem ao seu lado, ou desprenderem-se do seu tronco, outras doutrinas, mais ou menos perfeitas, mais ou menos duradouras, que com a primeira têm em comum o reconhecimento duma verdade ou dum dado ponto partida do qual uma e outra extraem deduções e conclusões diversas.

Especialmente as doutrinas que se dirigem às multidões, e têm um fim social, político ou religioso, suscitam em torno de si, e quase sempre contra si, os hereges; os quais tanto podem ser os reformadores e aperfeiçoadores da doutrina mãe como os seus corruptores. Quase sempre acontece que, no primeiro caso, a heresia vence a doutrina e substitui-a, tornando-se doutrina ela prórpia; enquanto que, no segundo caso, ou o novo ramo atrofia e depressa seca, ou mantém uma vida difícil ao lado do tronco de que deriva, o qual continua a crescer e a viver por conta própria.

Algo de semelhante aconteceu com o anarquismo, que hoje conta à sua volta não poucas filiações das suas teorias; desvios e ramificações que a ele se prendem no que constitui a característica principal e necessária de todas as doutrinas anárquicas: a negação do princípio da autoridade, isto é, de toda a coação violenta do homem sobre o homem. Conforme a diferente interpretação que cada teoria faz deste principio negativo, a autoridade é mais ou menos negada, e varia o método de combate de cada uma, como variam as ideias adicionadas à ideia mãe. Mas esta permanece o ponto de partida comum, seja para os argumentos teóricos, seja para a ação prática que os seguidores lhe fazem resultar.

* * *

A anarquia historicamente — e, tal como a aceitam a maioria dos anarquistas, também ideologicamente — é uma escola do socialismo.

O socialismo, após o período embrionário da sua formação, que compreende todo o ciclo dos socialistas apriorístas e utopistas (Babeuf, Fourier, Saint-Simon, Owen), torna-se positivista, encontra o seu caminho através das tentativas Proudhon, assume forma e linguagem científica com Karl Marx, até que no caldo das revoluções políticas de meados do século XIX, e após a Comuna de Paris, chega à sua maturidade, e cinde-se nas duas tendências que continha dentro de si desde os primórdios: a autoritária e a libertária.

O socialismo anarquista prende-se de algum modo a Fourier, assim como o socialismo autoritário a Saint-Simon. As duas tendências não se manifestaram porém enquanto o socialismo não atingiu um certo grau de expansão e não sofreu a elaboração necessária. A questão económica mantinha-as unidas e impedia-as de se manifestarem, devido à necessidade imperiosa e absorvente de afirmar com unanimidade de intenções aquilo que foi certamente a mais importante conquista social do século XIX: o princípio da socialização da propriedade, vale dizer, a afirmação do direito proletário diante da burguesia, a entrada na vida de uma nova revolução sobre o exaurimento da revolução de 1789.

A Associação Internacional dos Trabalhadores fez esta declaração de guerra em 1864; o Manifesto dos Comunistas de Marx e Engels, escrito já em 1848, foi dela o intérprete. A Comuna de Paris de 1871 foi a vulgarização heróica — sublime propaganda pelo facto — da ideia socialista.

Após 1871, no seio da Internacional, que já havia conquistado para o socialismo o direito de cidadania entre as ciências económicas e sociais, nos congressos memoráveis que foram verdadeiros laboratórios de ideias, o problema da liberdade fez-se sentir mais fortemente, e a cisão aconteceu, já que agora se tornara incompatível a permanência na mesma casca das duas tendências já adultas e opostas. Mikhail Bakunin e Karl Marx, dois colossos, sintetizavam a contenda de ideias e métodos entre o socialismo autoritário e o socialismo libertário ou anarquista.

Desde então os dois socialismos caminharam separados, cada um por sua via, ajudando-se por vezes como aliados, mais vezes combatendo-se asperamente, cada qual pretendendo para si a posse da verdade e o segredo da revolução social.

Não cabe aqui examinar quem tinha maior razão.

* * *

Assim, como veio ao mundo a primeira vez, a anarquia foi portanto socialista. Mesmo Proudhon que, pode dizer-se, mantinha um pé no socialismo utópico e outro no socialismo que hoje se costuma chamar científico, nunca desacompanhou o seu conceito anarquista da organização social do conceito socialista da negação da propriedade individual. A propriedade é um roubo! esta verdade em vestes de paradoxo, já lançada por Brissot durante a tempestade da revolução francesa, foi ele, Proudhon, que a repetiu por sua conta e a tornou popular.

Mikhail Bakunin, que não tem as incoerências de Proudhon, e é quem primeiro apresenta a teoria anarquista como um todo orgânico, foi antes de tudo socialista. A ele se deve, e aos seus seguidores, a vulgarização do socialismo na Europa meridional. De modo ainda mais resoluto e mais radical do que Marx, ele pregou a socialização da propriedade, ao que dava a maior importância. Nos seus opúsculos, livros e artigos é sobretudo de socialismo que se fala, de propriedade coletiva; e aliás a palavra anarquia raramente aparece. Socialista em economia ao ponto de ser de certo modo marxista, dos marxistas discordava na forma de organização política da futura sociedade socialista, e entretanto também na forma de organização das forças socialistas em luta, nos métodos.

Por muito tempo na Europa latina, enquanto não surgiu o partido social-democrata, os anarquistas que se davam a conhecer na sua propaganda chamavam-se simplesmente socialistas. Carlo Cafiero, anarquista, foi o primeiro a vulgarizar na Itália O Capital de Marx. Um opúsculo de Errico Malatesta, Entre Camponeses, o melhor opúsculo de propaganda anarquista alguma vez escrito, saiu a primeira vez com o subtítulo propaganda socialista, e não é senão uma crítica da organização individualista da propriedade — tão socialista que Camillo Prampolini lhe fez uma edição, purgada das frases demasiado anarquistas e revolucionárias, para uso da propaganda social-democrática.

De resto, toda a sociologia anarquista até há pouco tempo estava impregnada de marxismo, dos seus erros assim como das suas verdades; e possivelmente não houve marxistas mais coerentes com a doutrina do mestre do que os anarquistas, os quais devem alguns conceitos mais catastróficos — abandonados hoje pela maioria — precisamente às ideias catastróficas de Karl Marx.

* * *

A ideia da liberdade individual, da autonomia dos indivíduos, dos grupos, das associações e das comunas na federação internacional dos povos, nunca esteve desacompanhada, na doutrina dos militantes anarquistas, do princípio da solidariedade, do apoio mútuo, da cooperação (como de resto o dizem as próprias palavras «grupos, associações, federações, etc.»), e conservou sempre o significado eminentemente socialista que lhe atribuía Bakunin, quando em oposição à centralização de poderes desejada por Marx ele falava em federalismo.

Mikhail Bakunin foi de facto — com as devidas diferenças — para o socialismo o que na Itália foi Carlo Cattaneo para o republicanismo. Assim como os unitaristas não podem negar que era republicano o federalista Cattaneo, também os socialistas autoritários não podem negar (e não o podem negar tampouco os individualistas) que era socialista o anarquista Bakunin.

O anarquismo de Mikhail Bakunin sofreu uma certa evolução com o tempo. Foi mais bem elaborado e tornou-se cada vez mais racional e científico. Mas nunca perdeu o seu caráter socialista. Aliás, aperfeiçoou-se, por assim dizer, tornando-se ainda mais socialista, passando de coletivista para comunista. Foi nos últimos congressos da Internacional que Piotr Kropotkin, Carlo Cafiero, Élisée Reclus, etc., falaram no comunismo anarquista e que o anarquismo foi aceite sob este novo nome. Os próprios social-democratas admitem que o comunismo é uma forma mais evoluída de socialismo do que o coletivismo. Não era Karl Marx comunista?

Julgo que os anarquistas foram, aliás, um pouco dogmáticos demais na defesa do comunismo, enquanto deveriam ter considerado que o importante era assegurar ao proletariado a liberdade de organizar a seu modo a propriedade no rescaldo da revolução, depois de a ter arrancado do monopólio capitalista. Eu sou comunista, mas não acho que se deva ser demasiado exclusivista nesta teoria sobre o modo como organizaremos a propriedade, o modo de a socializar. O importante é poder socializá-la (e isto é socialismo), e socializá-la à nossa maneira (e esta é a anarquia).

Por isso muitos anarquistas hoje, sendo comunistas, preferem antes chamar-se socialistas-anarquistas.

* * *

Até cerca de 1890 não havia nenhum anarquista que concebesse a anarquia diversamente de uma especial estrutura de organização socialista. A liberdade de um cidadão começa onde acaba a liberdade de outro cidadão, reafirmava Piotr Kropotkin no processo de Lyon de 1882. E o rabelaisiano faz o que queres era entendido sempre no sentido do ego-altruísmo, da liberdade própria completada pela liberdade alheia, do bem-estar alheio necessário ao bem-estar próprio, numa palavra, no sentido da solidariedade.

Só após 1891 aparceceu no mundo anarquista o individualismo, nele infiltrando-se, eu diria, quase sorrateiramente, mas nunca conseguindo conquistar mais que poucas individualidades isoladas, e não conseguindo de modo algum ser aceite nem pela ciência sociológica, nem pela inteligência agora já não desprezível nem obtusa das massas.

Max Stirner foi desenterrado das bibliotecas poeirentas; e este filósofo paradoxal voltou à luz e obteve as honras dos maiores génios, cerca de cinquenta anos depois, por mérito sobretudo de artistas e literatos que nele encontraram interpretada a rebelião contra os velhos dogmas e contra a tirania da atual sociedade, uma sociedade de gansos e serpentes, em que as suas aspirações se esfarrapam ou encontram obstáculo, e que por isso suscita neles, mais do que o desejo humano de a transformar e converter, o desejo individualista, egoísta, de a descurar e desprezar do alto das suas fantasias literárias e artísticas.

Quem sabe se nesse desprezo não está também adormentada e inconsciente uma pontinha de desejo de dominação e privilégio, uma tendência a substituir a tirania do Estado, do padre e do patrão pela tirania dos «intelectuais!»(*)

A preocupação máxima do eu, que não é acompanhada do sentimento da solidariedade, deixa desconfiados os anarquistas socialistas, nós que somos a massa, e que não queremos sobre nós nenhuma tirania.

Justificada ou não esta nossa desconfiança, entretanto constatamos isto: até ontem o individualismo stirneriano era até ignorado entre os anarquistas. Que isto desmente a paternidade de Max Stirner sobre o movimento anarquista contemporâneo — afirmada mas não demonstrada por Georgi Plekhanov, Ettore Zoccoli e outros —, é mais do que evidente.

E agora examinemos qual é hoje a influência de Max Stirner no seio do anarquismo, influência conquistada postumamente; e assim constatemos ainda melhor o equívoco em que (de boa ou má fé, não importa) caíram aqueles que vêem na anarquia nada mais que o triunfo do individualismo, o exagero, para dizê-lo com Filippo Turati, do «individualismo burguês».

E vejamos também que ligação tem a teoria stirneriana com aquela que informa o movimento anarquista; porque em muitas partes uma parece combinar com a outra, quando pelo contrário são extremamente contraditórias; — e vejamos como são contraditórias.

LUIGI FABBRI.
(Il Pensiero — Ano I, Número 7, outubro 1903)

II

Os anarquistas, no completo significado da palavra, todos que combatem a tripla manifestação da autoridade coerciva na pessoa do padre, do patrão e do carabineiro, muitas vezes encontram ao seu lado como aliados muitos que, embora não aprovando todo o conceito negativo do anarquismo, nele encontram uma ótima arma para se defenderem, e a defesa depressa se torna ataque, contra a manifestação da autoridade que mais lhes ataca.

Assim em França, durante o caso Dreyfus, os anticlericais encontraram nos anarquistas uma ajuda formidável que decidiu a vitória na luta contra os padres; e assim os anti-militaristas contra o militarismo. No trabalho de organização operária e resistência contra o capitalismo, os anarquistas encontram-se muitas vezes lado a lado com os socialistas; assim como, quando se trata de lutar contra o arbítrio governamental e para obter maior liberdade política, por necessidade encontram-se a ter que fazer um certo caminho juntamente não só com os socialistas mas também com os republicanos. E tudo isto não por um acordo pré-estabelecido, mas pela própria força dos acontecimentos, tal como um de nós poderia amanhã por acaso encontrar-se na mesma carruagem com uma pessoa com quem não simpatiza e não vai de acordo, e ambos ajudarem-se se pelo caminho fossem assaltados ou esbarrassem com um qualquer obstáculo.

* * *

A rebelião dos anarquistas, que pretende demolir os alicerces das instituições sociais em que hoje assenta a sociedade, logicamente ataca também, no campo intelectual, artístico e moral, sem respeito algum, todos esses princípios sagrados que se vão formando em torno das instituições burguesas e autoritárias, e que se vão depositando como uma crosta em sua defesa.

Nesta luta sobretudo de ordem moral, na parte demolidora e não na reconstrutora, os anarquistas têm por aliados os individualistas stirnerianos(1). E são, digamos desde já, aliados formidáveis com punho de aço, e é talvez o seu ardor ideológico de demolição que os faz passar por anarquistas propriamente ditos, especialmente aos olhos de quem no anarquista vê antes o niilista, o destruidor — violento ou não — e não enxerga o idealista, o reconstrutor.

O stirneriano com a reconstrução não se preocupa. Sente-se oprimido, abatido sob um monte de instituições odiosas, uma avalancha de preconceitos, convenções, costumes, e quer disso libertar-se, e proclama o direito do indivíduo de não ser sacrificado à comunidade, que especialmente hoje constitui o meio pelo qual a opressão geral se impõe; quer ter direito ao exercício do próprio pensamento, das suas faculdades, e desfrutar da vida com toda a força do seu cérebro e dos seus músculos.

Assim, pela crítica audaz combate toda a instituição que estorva qualquer direito seu. E até aqui estamos de acordo, já que também nós, anarquistas, reivindicamos para o indivíduo os mesmos direitos e por conseguinte combatemos as mesmas instituições.

Mas o individualista fica por aqui, não sai da consideração do seu «eu», e quando muito diz: cada um que se arranje, e quando todos fizerem como eu, todos serão livres. Quer libertar-se a si mesmo, mas não se preocupa com os outros, a não ser na medida em que eles limitem ou possam limitar o seu direito. Por isso três quartos do problema social escapam à sua atenção, e acontece que, de premissas assim tão limitadas, se podem extrair as consequências mais diversas e contraditórias, as mais revolucionárias e também as mais conservadoras; frequentemente mais estas do que aquelas.

Émile Henry, em nome da soberania do indivíduo e para afirmar o seu direito contra a opressão burguesa, lança uma bomba num café (é verdade porém que, sob a capa do individualismo, havia uma alma que sentia muito a solidariedade); mas em nome da soberania individual também Nero poderia mais uma vez incendiar Roma, para dar ao seu «eu» a satisfação de desfrutar do alto duma torre o imenso espetáculo de uma cidade em chamas. Nem de resto a minha comparação é excessiva; há um literato de pronunciadas tendências individualistas que procurou tornar Nero simpático deste ponto de vista.

* * *

O anarquista é individualista na medida em que se preocupa com a liberdade individual própria como com a dos outros, vendo na dos outros uma garantia e uma ajuda para a sua.

E aqui está, a meu ver, o caráter ilógico dos stirnerianos, que em vão pensam na sua libertação quando não querem pensar também na de toda a humanidade. A humanidade, essa que para eles é uma abstração nociva, é o ambiente em que têm de viver e do qual não se podem esquecer, já que um não pode ser livre entre um povo de escravos a não ser na condição de ser tirano. E não podem esquecer a coletividade que os rodeia também porque, para demolir as formidáveis instituições que mais estorvam a consciência e a ação humanas, não bastam os livros de filosofia nem a rebelião individual, por intensa que seja, e é necessário o esforço organizado, simultâneo, guiado por um conceito de acordo, das multidões.

Assim concebem os anarquistas socialistas a revolução social: a guerra contra as instituições autoritárias e burguesas por uma multidão — seja esta embora minoria perante a massa dos incertos, dos indiferentes e dos passivos — composta por individualidades pensantes, voluntariamente unidas para a batalha pelo vínculo, o único vínculo libertário, da solidariedade.

Talvez nem todos os individualistas stirnerianos combatam o princípio de solidariedade (muitos sim), porém todos o descuram completamente. O que significa descurar quase completamente a questão social em todos os seus aspetos políticos e sobretudo económicos.

Eles ignoram assim um coeficiente importantíssimo da vida humana, sem o qual não haveria humanidade possível, e tampouco seria possível a existência individual. Solidariedade e individualismo são duas forças de evolução que estão para a sociedade como os movimentos centrífugo e centrípeto estão para o cosmos. Um stirneriano seria como um estudioso de física que nas suas investigações quisesse ter em conta só a força centrípeta; do mesmo modo que um socialista de estado seria como um outro que quisesse ter em conta só a força centrífuga.

O socialista anarquista, ao invés, não pretende descurar nenhuma das duas forças, procura o equilíbrio entre elas, e encontra-o — ou pelo menos acredita tê-lo encontrado — na anarquia, um estado de coisas em que a liberdade individual de cada um será completada pela liberdade de todos, dado que não há maior obstáculo à liberdade do que o isolamento.

«O homem isolado é o mais forte», diz Ibsen; e este ditado paradoxal foi tantas vezes repetido que hoje se julgará um paradoxo dizer-se, como eu sustento, que o homem isolado é mais fraco que o associado. Disse associado; não se traduza disciplinado.

O homem isolado é o mais fraco e o menos livre, porque se é verdade que a necessidade desenvolverá nele qualidades superiores à média, estas resultarão sempre impotentes para vencer as dificuldades e os obstáculos do ambiente, ainda que seja apenas o ambiente natural, que serão ao invés superados facilmente por homens normais associados.

Um homem que vivesse sozinho, e fosse forte como um orangotango e inteligente como Dante, seria sempre menos livre — a liberdade consiste, no fundo, na possibilidade de fazer o que se quer e o que se precisa — do que uma criança vivendo no meio da sociedade.

* * *

Alguns dirão que estou a chover no molhado, e que estas coisas já nós sabíamos desde que, em crianças, nos ensinaram a história do raminho que se parte facilmente quando está só e se torna forte unido aos outros em feixe.

É verdade; mas a especulação filosófica, lançada sem freio para os campos ilimitados da abstração e do paradoxo, chega muitas vezes a isso, ao esquecimento e ao desprezo das verdades mais elementares. Não está mal, portanto, que alguém  repita tais verdades, tanto mais quando é necessário para impedir que a negligência das mesmas se infiltre entre os que mais precisam de a recordar e praticar na luta quotidiana pelos seus direitos.

E depois, o paradoxo stirneriano, sendo de facto um paradoxo quando dele se extrai a consequência do isolamento individual, deixa de o ser quando ao invés o consideramos como o triunfo do mais forte no meio da sociedade, um triunfo obtido para além do bem e do mal como diria um seguidor de Nietszche, ou seja, em boa linguagem vulgar, fora de toda a consideração moral e de justiça: o indivíduo que satisfaz o próprio «eu» sem querer saber dos outros, e até em detrimento dos outros.

Isto já não é um paradoxo; a luta pela vida, como a entendiam os darwinistas da velha escola, travada com unhas e dentes entre homem e homem, entre irmão e irmão, é a sua aplicação prática, já realizada na vida social. Outrora eram os déspotas políticos que venciam, hoje são os déspotas económicos; e então como agora o indivíduo mais forte venceu e vence.

Certamente, os vencedores de hoje são mais antipáticos que os antigos, pois o máximo elemento de vitória para eles já não é a ilusão religiosa que animava os cavaleiros errantes e as cruzadas, nem o cintilante preconceito cavalheiresco da nobreza, mas só uma coisa estúpida e bruta sem a sombra duma aparência ideal: o dinheiro. O dinheiro que conspurca tudo, que se impõe a todos, faz inteligente o idiota que o possui, forte o mais cobarde, sufoca as inspirações impondo-se e impondo a mediocridade, não áurea, até onde menos teria voto na matéria, em arte, em literatura.

E os artistas e literatos, entre os quais se contam na maior parte os individualistas, estão no seu direito quando contrapõem o próprio «eu» genial, a própria superioridade individual, a toda a sociedade moderna empastada da lama mais vulgar, e a uma maioria que, pela perversa organização social, não pode elevar-se à compreensão de certos conceitos artísticos e certos requintes literários. A sua rebelião consciente em nome da própria individualidade intelectual é um coeficiente revolucionário não descurável; a crítica corrosiva às instituições que sai de qualquer trabalho de Paul Adam, dos romances de Mirbeau, dos opúsculos, cada um deles uma obra prima, de Leon Tolstoi (também ele um individualista apesar da monomania religiosa), são para a sociedade moderna o que eram as comédias satíricas de Beaumarchais antes de 1789: o prelúdio da Revolução, o ranger do edifício social à beira da ruína.

Desde que não se cometa o erro gravíssimo de confundir a maioria da sociedade com o povo propriamente dito, e dirigir exclusivamente a este o desprezo merecido por aquela — as insolências aos plebeus da Laus Vitae de D’Annunzio que o ensinem —, que anarquista não subscreveria as páginas destes individualistas?

* * *

Mas o individualismo puro, um dos agentes de progresso em arte e literatura, não deve pois ser transposto para sociologia. O individualismo em economia tem por resultante o privilégio de propriedade, a concorrência dos interesses, o capitalismo numa palavra, o homo homini lupus de Hobbes.

Os individualistas anarquistas da escola de Max Stirner, aqueles que da doutrina stirneriana quiseram extraír consequências em matéria económica, como John Henry Mackay e Benjamin Tucker — o primeiro expôs as suas ideias num livro muito conhecido, Anarchistes, e o segundo faz-lhes propaganda com uma revista de língua inglesa em Nova Iorque, a Liberty — são verdadeiros economistas burgueses, liberalistas que dariam a mão ao nosso Maffeo Pantaleoni, a Vilfredo Pareto e… aos jovens monárquicos conservadores liberais, etc., como Giovanni Borelli.

E Mackay — a quem Zoccoli, no prefácio ao Único de Stirner(2), não quer, por respeito aos leitores, honrar com um excessivo ato de cortesia (provavelmente Zoccoli também ignora, assim como ignora todo o anarquismo de que fala, que Mackay é conhecido na Alemanha e Inglaterra como um dos melhores poetas) — é o mais autorizado intérprete do seu mestre. Foi Mackay quem primeiro tratou da reedição das obras de Stirner, quem recolheu os seus escritos menores, e lhe escreveu uma biografia; e foi ele quem primeiro cometeu o erro de ver no Único uma espécie de Bíblia do anarquismo.

O individualismo stirneriano conduz em economia à propriedade «individual», ao privilégio capitalista, isto é, à negação por meio do poder do dinheiro (que os stirnerianos anarquistas não querem abolido) dessa liberdade que reivindicam em política, moral e filosofia. Mackay, de resto, não esconde de modo nenhum as suas ideias liberalistas, ainda que negue as consequências lógicas que delas derivam; ele sustenta que em anarquia a livre concorrência dos interesses facilitará a seleção natural, e que a propriedade é necessária à liberdade.(3)

Não cabe aqui explicar o equívoco em que cai Mackay, e refutar a sua teoria.

Em política, a consequência do individualismo stirneriano é o isolamento de que acima falei, ou a tirania: o primeiro impossível, a segunda perversa, e sobretudo anti-anárquica.

Fora do conceito da solidariedade, o indivíduo que pensa apenas em si próprio, e nos outros só na medida em que lhe são úteis ou prejudiciais, para ser completamente livre precisa de estar acima de todos, ser a autoridade máxima; a qual pode até ser boa, a crer na história que nos diz que foram bons alguns soberanos absolutos, mas também pode ser má. E para os anarquistas não se trata de ter um tirano bom ou mau, mas de não ter nenhum sobre si nem sê-lo sobre os outros.

Se a teoria stirneriana for arrastada para o campo da realidade, da vida vivida, fora da especulação abstrata, logo vemos quão ténue e vago é o fio que junta o anarquismo propriamente dito ao individualismo; de resto, é natural que esta relação exista, por mínima que seja, pois todas as teorias, inclusive as mais contraditórias, têm por um lado ou pelo outro alguma coisa de comum.

LUIGI FABBRI.
(Il Pensiero – Ano I, Número 8 novembro 1903)

III

Falei até aqui de individualistas, e esqueci-me de fazer uma advertência ao leitor que pode ficar baralhado entre tanto amontoado de nomes, de subdivisões, de teorias.

Há, entre os comunistas anarquistas, uma fração que em economia é tudo menos individualista e que, todavia, por algum tempo gostou de se chamar individualista para se diferenciar, não na teoria mas na prática de luta, dos próprios companheiros, também eles comunistas anarquistas, acerca da questão da organização em partido, do associacionismo operário, da ação individual e coletiva, entre outras. Estes, embora sendo na finalidade tudo menos individualistas stirnerianos, combatem a ideia da organização no seio da sociedade atual, e, em contraditório com os outros, pensam que é nocivo à causa revolucionária constituir um partido organizado, favorecer as associações operárias, unir-se num acordo pré-estabelecido na luta contra as instituiçõs. No meu entender eles são ilógicos e estão equivocados ao pensar assim, mas apesar das diversas tonalidades ideológicas, apesar do nome contraditório, são sempre anarquistas socialistas, teoricamente não dissemelhantes, pelo menos nas grandes linhas, de todos os socialistas anárquicos que compõem o conjunto do movimento libertário internacional. Os socialistas anarquistas, aqueles que assim gostam de se denominar, poderão até discordar — nem todos discordam verdadeiramente — do conceito da violência e da represália contra a sociedade burguesa tão admiravelmente exposta por Émile Henry na sua autodefesa perante os jurados (considerada uma jóia literária por Mirbeau, Leyret e outros) antes de subir ao patíbulo; mas não podem negar — por um excessivo amor à tranquilidade diante da reação ou simplesmente diante dos preconceitos dominantes — a afinidade ideológica que aos seguidores desse conceito os liga por um outro lado.

É preciso portanto não confundir estes não verdadeiros individualistas, que ao contrário entram na grande categoria dos comunistas anarquistas, com os individualistas stirnerianos de que falo.

* * *

Fechado assim o parêntesis, aproveito a ocasião para afirmar de novo que o individualismo stirneriano também nos meios, assim como na teoria, é tudo menos revolucionário, no sentido histórico e prático do termo(4). Os individualistas stirnerianos (recordai que falo sempre dos individualistas que se dizem anarquistas e são militantes, não dos desportistas, dos literatos(5) e menos ainda dos super-homens à la D’Annunzio) são liminarmente contrários a qualquer ideia de violência individual ou coletiva. Eles confiam o triunfo das suas ideias à seleção natural, à propaganda pacífica, à resistência passiva contra a sociedade autoritária, à amena propaganda pelo facto consistente em agir na vida o mais possível segundo as próprias ideias e contra os preconceitos dominantes. Leon Tolstoi, tirando o místico verniz, é neste sentido intérprete do seu programa de luta, se programa de luta se pode verdadeiramente chamar.

Que coisa em comum podem ter com estes individualistas os socialistas anarquistas revolucionários que, ao contrário, têm constantemente o pensamento voltado para uma palingenesia social, uma revolução — não aquela pseudo-científica de Enrico Ferri — sem a qual não crêem possível a resolução do problema do pão e da liberdade?

Repito: na crítica à sociedade presente, muitas das suas páginas podem ser também nossas, como podem ser nossas as páginas de crítica às religiões de Molescott, Bünchner, Ferrari, as de crítica à propriedade individual de Marx e de todos os socialistas autoritários, as de crítica ao Estado de Spencer e de muitos dos mais audazes liberalistas, as de crítica aos atuais preconceitos morais de toda uma falange de pensadores com Nietszche à cabeça — em suma, na demolição.

Mas só a demolição não basta para acomunar duas escolas diferentes, já que o que forma a estrutura dum edifício ideológico é o princípio, o móbil da demolição, o objetivo a que a demolição tende, o conceito da sucessiva reconstrução.

Os anarquistas, a modo de exemplo, derrubariam de bom grado o governo italiano, como o derrubariam de bom grado os clericais que desejam restituir Roma ao papa; dir-se-á por isto que há afinidade entre uns e outros?

A comparação, certamente, é um pouco paradoxal demais, mas serve contudo para explicar o que quero dizer.

* * *

A ideia anarquista é já no seu conjunto uma teoria formada, adulta, completa. Tem princípios éticos deduzidos dos factos e da realidade vivida da qual parte, uma crítica a todas as instituições sociais de que se serve; tem nas grandes linhas um fim em economia, em  política e em moral.

É uma ideia coletiva, pois para ela contribuiram muitos, direi até multidões, e não manou do cérebro genial de um só. Bakunin, Reclus, Malatesta, Kropotkin, Grave, disseram muito, mas nenhum deles disse tudo.

A ideia anarquista emana das obras diversas e múltiplas dos seus pensadores, da ação multiforme dos seus militantes, do movimento libertário e revolucionário internacional, aqui prevalentemente teórico, ali prático, em alguns ambientes mais intelectual, noutros de índole mais mais operária, suscitando heroísmos tão sublimes quanto obscuros e erros enormes (errare humano est), movendo ora uma coletividade, ora um só, com tonalidades e acentos diversos — mas sempre em toda parte, nas linhas gerais, com a mesma característica em economia, em política e em moral.

O livro dos anarquistas ainda não foi escrito, e provavelmente nunca o será verdadeiramente, justamente pela vastidão e complexidade da ideia, a qual se manifesta de mil formas esquivas; mas se esse livro tivesse sido escrito, o Único de Stirner jamais poderia sê-lo.

A teoria stirneriana no fundo é reacionária; há nela rebeldia, mas é mais rebeldia contra o povo do que contra o tirano, mais contra os direitos das multidões do que contra o privilégio de um só, e, embora combata o privilégio, não é para o abolir, mas mais para o substituir por outros privilégios e outros privilegiados. Pelo menos é esta, em última análise, a consequência lógica a que se chega a partir das premissas individualistas, queiram-no ou não os que tais premissas colocaram.(**)

* * *

A anarquia é, ao invés, a negação de todas as arquias (é Diotallevi quem italianiza esta palavra grega) para todos, tanto do ponto de vista de muitos como de um só, do indivíduo como do povo. É a abolição da autoridade em todas as suas manifestações coercivas e violentas, do governo sobre o súbdito, do patrão sobre o servo, do padre sobre o crente, e, mais abstratamente, da lei escrita sobre os consociados que a não quiseram ou não a aprovam.

Mas abolir a autoridade no sentido da coação da vontade e das ações alheias, não significa abolir a sociedade, abolir a cooperação, abolir a solidariedade, abolir o amor, numa palavra, abolir a vida.

Por isso os anarquistas não se limitam a cada um negar a autoridade de que ele próprio é vítima, e querem todos juntos garantir uns aos outros o exercício da máxima liberdade possível, e isto por um pacto recíproco de apoio mútuo, sem leis e sem carabineiros, amanhã contra as eventuais prepotências de um só, de poucos ou de muitos — hoje na luta contra as oligarquias, imperantes por meio da supina ignorância da maioria.

* * *

A filosofia da história, a ciência, o estudo das instituições sociais, demonstraram-lhes onde está o mal, e por isso combatem a autoridade nas suas mais variadas formas. Combatem o instituto da propriedade individual, do monopólio capitalista, porque é uma autoridade (a mais nociva de todas para a maioria dos homens, a meu ver), combatem o instituto governamental, absoluto ou democrático, combatem as religiões, os preconceitos morais, etc., etc.; mas como demolir não basta, e é preciso neste mundo viver de pão e não só de filosofia, e não é possível a vida de nenhum homem isolado num mundo à parte, assim os anarquistas pensaram no modo de viver em sociedade, também após eliminadas todas as arquias, todas as prepotências autoritárias.

E estudando aperceberam-se que há uma sociedade não porque existe a autoridade, mas apesar desta; e que uma sociedade verdadeira — a societas leal entre iguais — ainda não existe porque a liberdade e a igualdade existem só de nome, e faltam nos factos. Por isso não combatem, como fazem os individualistas, a sociedade, mas procuram o equilíbrio entre esta e o indivíduo.

Sociedade verdadeira não existirá enquanto no seu seio o indivíduo não for autónomo, e a autonomia do indivíduo na sociedade só será possível quando esta for coordenada segundo o princípio vital, sem o qual o mundo humano seria extinto, e que nenhuma prepotência autoritária pôde alguma vez durante os séculos sofocar, o princípio de solidariedade; lei natural como a da gravitação universal, à qual nem um só átomo se poderia furtar sem fazer o universo entrar no caos lendário.

Roma, dezembro 1903
LUIGI FABBRI.
(Il Pensiero – Ano I, Número 10, dezembro 1903)

Outros artigos polémicos sobre o individualismo

[Segue-se «Individualismo e Solidariedade», de Jean Grave]

Há alguns anos, certos literatos deram-se conta de ter descoberto Nietzsche, Stirner e até Schopenhauer. Uma vez seguindo-lhes o rasto, eis que tomaram conhecimento de que havia pelo mundo um indivíduo — o Indivíduo! —, que esse indivíduo era mais importante que tudo, tinha o direito de viver, gozar, desenvolver-se em toda a sua integralidade, segundo as suas faculdades e aptidões, sem ter que tomar em conta qualquer entrave, qualquer obstáculo, a não ser para os quebrar se o estorvassem, ou subjugá-los se lhe pudessem ser úteis.

E fabricou-se assim uma anarquiazinha que tendia a nada menos do que elevar uma nova artistocracia: a aristocracia intelectual, que, como as outras, desprezava profundamente o resto da massa, não vendo nela mais que um rebanho de escravos bons para produzir e labutar para o «intelectual», o qual poderia assim desenvolver-se e crescer em força, inteligência e beleza!

Esta concepção do indivíduo, do intelectual, adulava demasiado a vaidade de alguns falhados para que eles não se tornassem os seus defensores resolutos. É uma teoria demasiado cómoda para justificar os atos mais contraditórios, para que não fôssemos brindados com esta nova escola
A liberdade mais completa para o indivíduo, o seu direito à satisfação integral de todas as necessidades, são reclamações absolutamente legítimas, e não havia nenhuma necessidade de ir desenterrar Nietszche e Stirner para lhes dar uma qualquer consagração. É o que o homem procura desde que está no mundo, é este instinto primordial que o fez tentar as diferentes revoluções, mesmo as mais políticas, que ele realizou pelo caminho. E é o que nunca cessaram de reclamar os anarquistas comunistas.

Simplesmente, os anarquistas comunistas, que não se satisfazem com palavras e abstrações, partidários que são do método científico que requer que nos apoiemos em factos, não se contentaram com fazer metafísica, estudaram as condições de existência do indivíduo, e sem se gabarem de ter feito uma descoberta espantosa — pois salta à vista de qualquer um —, viram que o indivíduo não era uma entidade única, vivendo nas núvens da dialética; mas um ser de carne e osso, com uma tiragem de cerca de dois biliões de exemplares, e que o que era veradeiro para um, era igualmente verdadeiro para cada um desses dois biliões.

De resto, a necessidade de viver em sociedade não se discute. Foi porque se agrupou com os seus semelhantes que o homem adquiriu a faculdade da linguagem, e a de exprimir as suas ideias; foi na troca de ideias com os seus companheiros que ele conseguiu modificar e alargar as suas primeiras impressões, fazer delas tradições que as gerações se transmitiram, discutindo-as depois de as terem seguido cegamente, e das quais, de progresso em progresso, se constituiu a bagagem científica, artística e literária de hoje. O homem que quisesse completamente isolar-se dos seus semelhantes, retornaria ao estado de bruto, se as espécies mais bem armadas não o tivessem liquidado antes.

Então, aqui, o problema complica-se. Pelas necessidades dos seus organismos, e pela exiguidade do espaço em que estão encerrados, que forçosamente limita o seu campo de evolução, já não basta aos indivíduos afirmar os seus direitos: importa sobretudo procurar as condições em que os poderão exercer, sem dano para si próprios e sem dano para os outros, o que poderia trazer represálias e limitar os direitos afirmados demasiado brutalmente.

E a partir do momento em que o indivíduo não pode viver e desenvolver-se a não ser em sociedade, não lhe resta mais que dois modos de afirmar a sua liberdade: — agindo ao sabor da sua vontade, se for suficientemente forte para se impor aos outros, sem se preocupar com as suas reclamações quando os prejudica, ou fazendo-lhes crer, pela artimanha, que age assim no seu interesse… e então não é preciso reivindicar uma transformação social, pois temos a sociedade burguesa que nos fornece uma gama variada desses métodos e das suas diferentes combinações; — ou então os indivíduos entender-se-ão entre si para encontrar uma organização social que, trazendo-lhes o máximo bem-estar em troca do mínimo de esforços, lhes permita evoluir sem se estorvarem, conservando, por concessões recíprocas ou uma perfeita adaptação e combinação das aptidões, a maior soma de liberdade possível… ou seja, por uma inteligente prática da solidariedade.

JEAN GRAVE

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Fiz questão de traduzir para a Il Pensiero, de um almanaque revolucionário francês, este breve ensaio — sobre o mesmo tema a que já dediquei três partes de artigo — do conhecido anarquista parisiense Jean Grave, o redator de Temps Nouveaux, autor de vários livros de vulgarização libertária, que com todo o direito pode ser considerado o intérprete mais autorizado — seja-me permitido este termo, tratando-se de anarquistas — do anarquismo francês, precisamente aquele anarquismo que, mais do que tudo, tem dentro de si fortes tendências e tonalidades individualistas; para assim dar mais uma prova do que quis demonstrar nos artigos precedentes: não existir, entre o movimento anarquista e o individualismo stirneriano que se diz anarquista, nenhuma relação, nem histórica nem teórica, para além de algum ponto de contacto que até as ideias mais contraditórias têm muitas vezes entre si.

Recebi estes dias algumas respostas, também não muito cortesas, aos meus artigos; uma delas será publicada pela revista num dos próximos números, e dela me ocuparei a seu tempo. Aqui cumpre-me reafirmar uma vez mais, até para exclerecimento dos críticos mais ou menos benévolos, o seguinte: que a anarquia, enquanto teoria e enquanto movimento social e revolucionário, tem uma origem histórica completamente diferente das várias escolas individualistas atuais, e de modo nenhum remonta a Max Stirner; e que o movimento anarquista atual, aquele que por este nome é conhecido em toda a parte, de modo nenhum é individualista no sentido que a esta palavra dão os stirnerianos individualistas mais conhecidos, que do individualismo fazem propaganda. Isto é verdade indiscutível, tratando-se de factos e não de ideias abstratas. Quanto às ideias abstratas, procurei também demonstrar que o conceito stirneriano não é anarquista; mas por muito que esta minha opinião seja partilhada por grande parte dos anarquistas, ela não é mais que uma opinião e, como tal, com certeza perfeitamente discutível. Se necessário, voltaremos a discuti-la, ou melhor, deixaremos que a discutam; e os leitores não se queixarão muito se esta questão se prolongar um pouco mais, já que nela está contido um problema interessantíssimo e premente da vida social contemporânea, o da relação entre a liberdade individual e a necessidade de sociabilidade.

De Max Stirner e da relação entre as suas teorias e o anarquismo ocuparam-se, entre outros autores conhecidos em Itália, Georgi Plekhanov e Ettore Zoccoli.(***) E falo deles para pôr em guarda os que, demasiado precipitados a dar ouvidos às afirmações menos comprovadas, quisessem contra mim apoiar-se na opinião deles para desmentir o que afirmei.

Georgi Plekhanov, cuja boa fé é muito discutível (não cabe aqui demonstrar a sua má fé, de resto conhecida de muitos dos seus próprios companheiros russos) ocupa-se de Stirner numa dezena de páginas dum libelo seu, publicado na Itália primeiramente em série na Critica Sociale de Turati, e depois num opúsculo de uma centena de páginas, sob o título Anarchismo e Socialismo. Plekhanov pretende demonstrar que os anarquistas não são socialistas, e sim inimigos do socialismo; dá-lhe jeito por isso fazer passar Stirner por anarquista e percursor do movimento anarquista. Essa sua afirmação porém é feita sem qualquer tentativa de demonstração. Afirma que Stirner é anarquista, em seguida demonstra (facilmente, pois é uma verdade indiscutível) que Stirner não é socialista, e daí conclui que os anarquistas não são socialistas, e… o jogo está feito. Julgue porém o leitor sobre a sua seriedade.

O professor Ettore Zoccoli, jovem publicista a quem os italianos devem alguns estudos sobre Nietzsche e Schopenhauer, bem como a tradução do Único de Stirner, ocupou-se também ele da relação entre Stirner e o movimento anarquista, mas com uma tão completa e assombrosa ignorância sobre esse movimento que só é desculpável em Itália, onde foi possível dizer-se todos os disparates e malícias imagináveis sobre o anarquismo e os anarquistas, desde as de Cesare Lombroso às outras do quondam delegado Sernicoli.

De resto, tanto num como noutro, a evidente preocupação em demolir e desacreditar «as ideias funestas e homicidas, a propaganda nefasta, o empirismo brutal e a tristíssima doutrina» dos anarquistas, a completa falta de serenidade, a ausência de documentação, ou uma documentação superficial e completamente fantasiosa, tiram às suas afirmações qualquer caráter positivo e científico. Max Stirner nas suas mãos é uma arma inepta de acusação, para não dizer de calúnia; e não é nas suas parcas páginas, interessadas e plenas de malevolência, que o estudioso pode ir procurar sérios documentos do hipotético nexo entre a teoria do filósofo de Bayreuth e a dos anarquistas de hoje.

LUIGI FABBRI.
(Il Pensiero – Ano I, Número 11-12, dezembro 1903)

(*)A revista conta com a colaboração de um amigo meu que quer fazer derivar de Stirner os seus próprios conceitos; eu peço-lhe para não ver nas minhas palavras uma ofensa às suas ideias, que, de resto, são um pouco diferentes daquelas que eu critico, não separando a ideia da liberdade individual daquela da solidariedade. Eu falo de toda uma tendência no movimento anarquista que tem erros e defeitos não certamente imputáveis a cada um, que pode ter as suas ideias especiais e pode por conta sua evitar esses erros e defeitos. Além disso eu falo dos individualistas que estão na órbida do movimento anarquista, e não daqueles que cultivam o seu individualismo só no campo artístico, onde o individualismo não só é lógico mas representa um real progresso e uma simpática originalidade. L.F.

(1)Digo individualistas stirnerianos, mas incluo aqui também aqueles que se dizem seguidores de Nietszche e de outros autores menores da mesma escola. l.f.

(2)M. STIRNER: L’Unico, com introdução de E. Zoccoli, — Fratelli Bocca, ed. Torino L. S.

(3)J. H. MACKAY: Anarchistes, moeurs du jour. — Tresse e Stok. ed., Paris.

(4)Paul Ghio enviou-me nestes últimos dias um livro seu editado por Colin sobre o Anarquismo nos Estados Unidos, no qual, falando do anarquismo individualista stirneriano de B. R. Tucker e resumindo amplamente as suas teorias, confirma o meu julgamento sobre elas como contrárias ao conceito revolucionário dos anarquistas comunistas, e favoráveis à manutenção da propriedade individual.

(5)Eu admiti o individualismo como possível no campo intelectual, mas agora apercebo-me de que também aqui há que ter as devidas reservas. Que individualista stirneriano poderia escapar, no seu trabalho, da cooperação de tantos outros intelectuais? Quem deles poderia afirmar que a sua ideia mais peregrina seja exatamente devida a si, e não determinada pelo trabalho intelectual de toda uma série de predecessores? Assim, seja embora retrospetivamente, ele é mais uma vez apanhado pela sociedade, que o tem ligado a si. Mesmo Max Stirner não fez outra coisa senão tirar consequências em forma paradoxal de premissas colocadas antes dele por outros pensadores; e nele é mais original a forma do que o pensamento.

(**)Ocupando-se dos meus dois artigos precedentes, para os refutar, Giovanni Diotallevi na Patria de 3 de dezembro confirma esta minha ideia sobre o significado reacionário que os stirnerianos, muitos deles pelo menos, dão à palavra anarquia: «Para mim — diz ele — é mais legitimamente anarquista um gordo burguês, o qual aspira por si prório a uma lei de privilégio e explora o suor dos outros, do que um socialista libertário que quereria ver abolidos os carabineiros e até certo ponto (totalmente, e não até certo ponto, l. f.) o código civil, mas pensa em repartir o pão com os seus irmãos.»

(***)Enquanto a Il Pensiero começa a ser impressa, leio no último número da Rivista di filosofia e scienze affini de Bolonha um longo artigo sobre Stirner do dr. Paolo Orano. Dele se ocupará num próximo número Catilina em Rivista delle Riviste. Eu entretanto noto que, apesar da ignorância também de Orano sobre os anarquistas nos Estados Unidos e… em qualquer outro lugar, ele confirma o que eu procurei demonstrar; e, a certa altura, diz precisamente assim: «Se há então um anarquismo no ÚNICO, é um anarquismo desprovido de meios… etc.» Note-se que Orano faz neste artigo a apologia de Max Stirner.

2 Comments Add yours

  1. ronnin diz:

    Caralho, genial. Tantas paginas palpitando sobre individualismo e até que enfim uma que o aborda certamente e de maneira brilhante
    ps: Vale lembrar também que kropotkin literalmente destroi essa dicotomia de individualismo X coletivismo no principio anarquista e outros ensaios, buscando fundar um equilibrio(cooperativismo) q n é a mesma coisa que no proudhon, pois o kropotkin não está tratando de dialetica serial, ele aborda sempre essas questões usando exemplos factuais da natureza(humana ou o resto) e metodo cientifico.

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